CIDADANIA 23
Diretório Estadual do Paraná
Curitiba, 22 de Setembro de 2023.
16:38
O governo federal aprovou recentemente (04/09) parecer da AGU que uniformiza o enquadramento jurídico e fixa pena de demissão para todos os casos de assédio sexual praticado por servidor público federal. Este parecer tem caráter vinculante, ou seja, é aplicado à toda a administração pública federal.
Imagem: Freepik.com
por Geovana Machado, presidente da J23 PR e ativista pela igualdade de gênero.
O governo federal aprovou recentemente (04/09) parecer da AGU que uniformiza o enquadramento jurídico e fixa pena de demissão para todos os casos de assédio sexual praticado por servidor público federal. Este parecer tem caráter vinculante, ou seja, é aplicado à toda a administração pública federal.
É também um dos esforços do governo para enfrentar a violência de gênero nas instituições, especialmente no contexto da Lei nº 14.540 que instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito de toda a da administração pública federal, estadual e municipal. Trata-se, portanto, de política pública extremamente importante rumo à construção de ambientes livres de toda a forma de violência, bem como seguros e igualitários.
Ora, a história das mulheres no serviço público inicia em 1918, época em que este espaço era dominado pelos homens. Desde 1994 o Brasil já era signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher da OEA, cujo assédio sexual no ambiente de trabalho, público ou privado, estava no rol de violência contra mulher. O próprio Estatuto do Servidor Público é da década de 90, instituído pela Lei nº 8.112/90, já na égide da Constituição Federal de 1988, a qual estabelece como direito fundamental a igualdade de gênero.
Não bastasse isso, o próprio Código Penal Brasileiro em 2001 já previa assédio sexual no ambiente de trabalho como crime, atribuindo pena de reclusão, ou seja, restrição de liberdade, cuja pena é a mais grave no ordenamento jurídico brasileiro.
Mas, o curioso é que mesmo diante de todo esse arcabouço normativo, especialmente a tipificação penal - a qual é a mais grave das sanções -, no âmbito da administração pública, casos de assédio sexual, quando chegavam a ser denunciados, nem sempre resultavam em pena de demissão.
A esse respeito, o próprio parecer da AGU relata que a uniformização do enquadramento jurídico de assédio sexual e das penas administrativas a serem aplicadas se deve em razão das diferenças de tratamento jurídico dado em cada um dos casos julgados entre 2016 e 2020 que foram analisados por comissão específica. Em outras palavras: não era evidente para todos os órgãos julgadores que assédio sexual é uma transgressão disciplinar grave que merece pena de demissão.
Precisou de mais de 30 anos da vigência do Estatuto do Servidor Público (Lei n. 8.112/90), que já estabelecia deveres e sanções disciplinares aos servidores, para que somente em 2023 o entendimento de que assédio sexual é conduta gravíssim, que, por óbvio, macula a imagem e confiança das instituições públicas, atenta contra a liberdade e dignidade sexual das vítimas, e, portanto, deve ser sancionada pela pena de demissão, foi uniformizado pela AGU.
Essa situação reflete um fenômeno nada incomum: a previsão legal, que se trata de um marco normativo histórico, nem sempre é aplicada como deveria. O óbvio nem sempre está visível para todos.
Neste caso, esse fenômeno é um problema histórico e cultural.
Explica-se. Apesar do reconhecimento normativo da existência de assédio sexual, é fato que culturalmente sempre houve uma naturalização desse tipo de violência. Aliás, não era raro ouvir que determinada importunação, constrangimento não era assédio, mas um “elogio”.
Pois bem. Não é e nunca foi elogio. Condicionar uma promoção a um encontro romântico com o superior, é assédio sexual. Convidar a colega servidora para um jantar, um cinema a dois, ou qualquer convite de cunho sexual não correspondido, é assédio. Ficar passando a mão no corpo da servidora sem a sua permissão, perseguindo-a, encurralando-a nos corredores, estacionamento, banheiros etc, também é assédio.
A pessoa se sente invadida, diminuída, indigna e principalmente com medo. Se tais convites, constrangimentos e importunações são praticados pelo superior hierárquico da vítima, esta também fica acuada e com receio de jamais ser promovida ou até mesmo ser designada para os piores trabalhos, ou ainda de ser excluída no ambiente de trabalho.
Essas condutas sempre estiveram presentes no mercado de trabalho, inclusive no setor público. Ora, a história da mulher nesse mercado sempre foi marcada pelo assédio, uma vez que sua aceitação se dava por conta de sua beleza e graça. Era para deixar o ambiente de trabalho “mais feminino, mais bonito” (logicamente aos olhos dos homens).
O que quero dizer é: trata-se de um comportamento histórico que invisibiliza, culpabiliza e cala a vítima, reforçando o esteriótipo de que a “mulher não serve para determinados ambientes de trabalho”. Em verdade, são séculos de naturalização da violência contra a mulher nesse ambiente, que se incorporou e se enraizou na própria cultura das instituições. Portanto, o problema não é apenas normativo, é cultural e histórico.
Dessa forma, a uniformização do enquadramento legal de assédio sexual e da sanção de demissão a ser aplicado ao servidor público é uma conquista, apesar de tardia, fruto de muita luta dos movimentos sociais em busca de dar visibilidade ao tema e principalmente cobrar por políticas públicas de enfrentamento da violência sexual, especialmente assédio no ambiente de trabalho.
Por fim, não é demais alertar: o parecer da AGU é de fato um passo importante rumo à igualdade, porém não podemos deixar de destacar que há muitos desafios a serem enfrentados, como por exemplo quais as condutas que serão interpretadas como assédio, que provas serão necessárias para uma efetiva condenação, a palavra da vítima de fato será levada em consideração, entre outros pontos.
Portanto, diante dessas reflexões que entendemos que cada conquista pela igualdade e pela extinção de toda a forma de violência de gênero, seja no âmbito das relações de trabalho, na vida doméstica ou na academia, trata-se sempre de uma luta histórica das mulheres por dignidade.